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Clarice Lispector e a insônia

Um dos projetos realizados pelos estudantes do curso de Português para Falantes de Espanhol (POR 411/511), no semestre de outono de 2023, foi um comentário sobre uma crônica brasileira para ser publicado neste blog. Depois da leitura de três crônicas em sala de aula, os estudantes foram convidados a escolher uma delas e escrever um texto em que apresentassem sua opinião e suas sensações relacionadas à crônica. Três de nossos estudantes, Samuel Espíndola Hernandez, Valentina Pucci e Omar Badessi, também doutorandos do Hispanic Languages e Literature Department, escreveram comentários muito interessantes sobre a crônica Insônia Feliz e Infeliz, de Clarice Lispector (1920-1977). Leia abaixo as impressões de nossos estudantes sobre um dos textos dessa escritora brasileira tão relevante:

A tese de Clarice Lispector no seu texto “Insônia infeliz e feliz” é que a insônia, embora seja uma perturbação do sonho, pode ser também uma oportunidade de realização de algumas coisas do que na vigília nós não temos consciência. Uma dessas coisas está relacionada com a característica da noite como o tempo de silêncio, introspecção, quietude e solitude. Para isso, a narradora faz uma narração dos feitos de mais uma noite de insônia. Ela sofre e fica enojada pela intrusão da insônia no seu sonho. Ela quer telefonar para um amigo ou alguém que pode acompanhá-la na sua insônia -nesses tempos, o telefone, um genial aparelho de comunicação, o primogênito, quase um irmão mais velho do celular-. Logo, faz um café, e se pergunta coisas como: “E o que se passa na luz acesa da sala? Pensa-se uma escuridão clara. Não, não se pensa. Sente-se.”. Se trata de uma conversa com as coisas, uma conversa sem reposta. Não pode ligar para ninguém à noite, porque ela não sabe se os outros estarão dormindo. Mas o que ela encontra, essa resposta não buscada, é que “Sente-se uma coisa que só tem um nome: solidão.” A luz da sala que está mal funcionando a faz pensar em sua solidão. No princípio, a solidão é uma coisa infeliz. É triste, e é a percepção de que estamos sozinhos. Na vida, e na morte. Mas, ela pensa: “De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo”. Esta é uma crônica que fala da solidão dos insones, a solidão feliz de sentir-se plena dona do espaço e do tempo. Eu gostei desta ideia. Às vezes se sente na própria carne essa solitude de que Clarice Lispector fala. Ontem, à noite, num instante atordoado, estranho, eu olhei minha imagem no espelho. Vi meus olhos e pensei sobre mim como se estivesse fora de mim. Foi muito estranho. Senti minha estranha solidão, minha bizarra individualidade. Por isso penso que Clarice tem razão quando ela sente tudo como dela, todas as coisas ao redor. Este é, no entanto, um descobrimento contraditório, para mim. Porque ela sente que as coisas existem, mas sem agência, entretanto sua pessoa existe sem nenhum peso, livre, em harmonia com a sua solidão. Mas eu me senti de uma forma de ser do ambiente, de estar mais perto das coisas, como se fosse uma tomada de consciência mesma, mas de fora de mim; à diferença de Lispector, que se sente parte de ambiente junto às coisas. Uma diferença sem distinção, diria um amigo físico. Talvez seja simplesmente que nossos sentimentos – dela e de mim- sejam uma vivência forte do presente, do tempo presente. Lispector foi uma das maiores vozes da literatura brasileira e em língua portuguesa do século XX. Se destacou por ter uma narração muito poética, sendo escritora principalmente de narrativa (romances e contos), e por haver criado uma figura de autora muito especial, como sua literatura: ácida, bela, intrigante. Alguns dos seus livros são: o romance Perto do Coração Selvagem (1944), seu primeiro livro publicado; A Paixão Segundo G.H, um romance (1961), A Via Crucis do Corpo, contos (1974) e A Hora da Estrela, romance (1977). Para fechar, podemos dizer que a insônia é uma propriedade das coisas, da noite e, portanto, ela pertence também ao reino da literatura, a aquilo que não é aparentemente produtivo, mas ao contrário: é improdutivo e por isso mesmo é uma coisa feliz. E é assim que queremos estar, se o sonho se ausenta de nossos corpos: levianos. Poderíamos rir frente a isso, a ideia de um vazio que se acha cheio, embora o oxímoro nos persiga. Trata-se de uma contradição que nos embeleza, porque nós podemos gostar dela, às vezes.

Valentina Pucci

 

Clarice Lispector foi uma das mais importantes escritoras do Brasil. Publicou os romances Perto do Coração Selvagem, Laços de Família, A Paixão segundo G.H., A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida. Ela escreveu muitas crônicas em diferentes jornais que foram compiladas em A descoberta do mundo. A crônica “Insônia infeliz e feliz” não trata somente da insônia mas de um tema recorrente para quase todos os escritores, se a solidão é uma coisa boa ou ruim. Aparentemente a crônica foi escrita depois de um acidente que a autora sofreu, um incêndio que deixou ela ferida e talvez com ansiedade e tristeza porque ela menciona que estava sobrealimentada, segundo certo doutor (mas nós sabemos que eles não são de fiar). É muito interessante como, apesar da insônia, ela continua tomando o café e esperando uma chamada com o telefone na mão. Ela elabora com as palavras um espaço que só ela pode morar, onde não é preciso mais nenhuma chamada: a noite silenciosa pode ser um alívio pra alma, onde nem fogo nem prescrições nem fofoca dos homens poderiam afetá-la, nem sequer seus meninos podem perturbar sua calma. Antes de ler esta crônica eu só conhecia A Paixão e O Lustre, seu segundo romance. Penso que é comovedor como a crônica troca uma experiência triste em uma coisa boa, feliz, uma sensação íntima de muita intensidade. Pessoalmente não tenho insônia a menudo nem tenho morado perto do mar, mas penso que todo o mundo conhece o desejo de estar mais e mais acordado, desperto, sem que nada fuja. Durante minha leitura pude ter um sopro dessa atmosfera noturna, lembranças de momentos quando você desfruta o silêncio, sentindo como as meninas do olho se abrem, ficam cheias do mar.

Samuel Espíndola Hernández

 

A autora expressa o seu sentimento de solidão, mas se trata de uma experiência íntima e escolhida por ela. A linguagem e o estilo usados na crônica merecem atenção particular, sobretudo, as metáforas naturais, como a lua, o sol e o fogo, etc, uma forma que enfatiza os elementos, os instintos e as sensações tácteis. Eu gosto como Clarice expressa seu estado emocional, ou seja, o processo de crescer e se autocontrolar, dominando as influências negativas e desagradáveis de seu entorno. Eventualmente, sente-se empoderada até o ponto de se sentir capaz de se apropriar do mar em sua imensidade, que, apesar de ser um exagero, não deixa de ser uma sensação de plenitude e riqueza pessoal. Em suma, Clarice experimenta uma transformação de um estado inicialmente de medo e insegurança a outra manifestação de integridade, inteireza e controle da sua existência.

Omar Badessi

 

Clarice Lispector (1920-1977). “Insônia infeliz e feliz”. Texto publicado em “A Descoberta do Mundo”. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira. 1984

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